domingo, 13 de janeiro de 2013

Des-escalas




1.De uma coisa para outra há muita coisa que está em jogo. Há uma fractura institucional qualquer. Mas, pelo menos, se se compreender melhor essa fractura, será viável outra compreensão. A de que poderá haver outro sentido de fractura e, assim, depois, talvez, outro sentido de ligação. Entre muitas e muitas gradações...
«Não imaginem que ocorra primeiro o tempo em que o que não existe quebra, nem que haja em seguida o tempo em que tudo se quebra. Trata-se simplesmente da "quebra"» (Dôgen, Shobôgenzô). Aproveitámos para citar Dôgen colhendo este passo de O Inumano de Lyotard (Editorial Estampa, 1990, p.63). E Lyotard acrescenta: «Há portanto uma presença que quebra e que nunca é inscrita ou memorável. Não aparece. Não é uma inscrição esquecida, não tem lugar nem momento, no suporte das inscrições, no espelho reflector, permanece ignorada pelos acessos e pela varredura (O Inumano, p.63).

2. É interessante que em certos contextos não-filosóficos o termo 'filosofia' seja sinónimo de 'estratégia', 'planificação', 'modus operandi', etc.

3. Como é que as teses de um pensador, segundo ele, poderão opor-se absolutamente às de outro, e reciprocamente? Quando o que defendem é, no fundo, absolutamente o mesmo, mas pressupondo essas teses absolutamente diversas (outras)? Não será aqui que se joga o movimento do mesmo e do outro como mesmidade? Mas como provavelmete não se dá bem por isso, a própria noção de mesmidade requer novo inquérito.

4. Escalas de pensamento. O olhar e voltar para trás (p. ex. vj. o mito de Orfeu e Eurídice).
A retrojecção impõe-se como movimento para trás, mas recebe resistência de trás. E essa mesma resistência comporta um solavanco. Esse solavanco para trás tem como efeito um desdobramento da retrojecção. Dupla retrojecção. Quer dizer, com a resistência ao recuo duplica-se de um modo aparentemente paradoxal esse mesmo recuo. Ou seja, vai-se ainda mais atrás do que o inicial recuo por via da resistência a esse recuo. O mesmo poder-se-á pensar relativamente ao movimento de projecção, de avanço. Daqui, poderemos depreender que estes movimentos se afiguram, à partida, duplos e quádruplos. Mas decorre daí que se trata de gradações quando retrogradativamente estamos ainda pensando em termos de  polarizações e bipolarizações. Talvez a questão de campo entre também em jogo.
É que, precisamente, aqueles duplo recuo e duplo avanço, provocam respectivamente, um impulso acrescido de avanço e recuo. O duplo recuo impulsionou mais fortemente o avanço e o duplo avanço impulsionou mais fortemente o recuo.

5.Pensamos em certas circunstâncias em termos de polarizações e bipolarizações, mas erroneamente. Nessas circunstâncias, pensar em termos de polarizações e bipolarizações é algo erroneamente suposto a priori. É equívoco pensarmos que esses pólos são os fundamentos das diferenças e das diversidades. Esses pólos vêm depois. Trata-se no entanto de um 'depois' contemporâneo (não sei se é o termo mais apropriado, depois verei melhor) daquelas multiplicidades, diferenças, diversidades. Estas, todavia, por seu turno, são um 'antes' contemporâneo daquele 'depois' (pólos, bipolaridades). Há, portanto, um paralelismo abrindo para um campo.
Tentando resumir, quando vejo as formas e as coisas à minha volta e o meu próprio corpo, o que se passa? Tudo isso é já resultado. É todavia um resultado simultâneo ao caos, ao indiscernível, às miríades de partículas e de indeterminações que constituem no entanto o presente. O presente não é um resultado, ou uma resultante? Mas não nos adiantemos.
Numa perspectiva estética e de filosofia da arte, deixo um passo que me parece estabelecer algum paralelo, tendo em conta as diferenças de contextos:

"O que é particular na obra de arte, e muito particularmente neste quadro de Ghirlandaio, é a inexauribilidade das forças e, assim, a constante intensidade da forma das forças. Constância que não implica imobilidade, mas dinamismo incessante: a força da presença renova-se a cada instante, talvez com modulações ínfimas de intensidade (o que depende também da subjectividade do espectador).
De onde vem a força que subjaz à forma (dessa força)? Sempre das pequenas percepções, essas unidades perceptivas ínfimas, «imperceptíveis» ou «invisíveis» como dizia Leibniz, em movimento infinito, e cujos conjuntos ou associações dão origem às macro-percepções. Mas antes de as formarem [as macro-percepções], organizam-se precisamente num meio agitado com a propriedade de ampliarem a escala da percepção. A forma de uma força não é mais do que o resultado desse aumento de escala: «vê-se» agora uma globalidade invisível, como se os nossos orgãos sensoriais recebessem como próteses microscópicos electrónicos" (José Gil, (2005) «Sem Título» - Escritos sobre Arte e Artistas, Rel. d'Água, p.55) (Colocámos itálicos).





Retrato de uma jovem, por Ghirlandaio (Colecção do Museu Calouste Gulbenkian)


6. Hoje, o presente é-nos tão dado, tão dado, que é como se nos fosse retirado.

7. Só se chega à palavra desfazendo-a.

8. Julgar que se está a pensar quando afinal se está a corporar (corporalizar, somatizar...).

9. Talvez algumas destas notas sejam um pouco quebra-cabeças e mesmo descabidas e desconexas entre si. Mas não era Heidegger que dizia que os quebra-cabeça hoje fazem falta?

10. O princípio de não-contradição ou de contradição (duas designações possíveis do mesmo princípio; vj Aristóteles) começa a manifestar-se na sua enunciação ainda em génese em Parménides (o ser é e não pode não ser); e em Heraclito, este movimento em génese é também decisivo (lógos na "tensão dos opostos" que leva a que "não dês ouvidos a mim mas ao lógos"). Em Platão opera-se um corte decisivo (eidos; Idea) que fará com que Aristóteles o deixe vir de novo à presença na physis. Não é a definição, a invenção da definição em Aristóteles, mas iniciada eticamente com Sócrates e eideticamente com Platão, marca decisiva a par dos princípios de não-contradição, de identidade e do terceiro-excluído?

11. Imaginar a ambiência ao ler Descartes. Isso não ajudará na compreensão da obra. Isso será somente tentar entrar no espírito do autor, à maneira  da 'compreensão' diltheyana distinta da 'explicação' científica?
Quando pensamos o nosso presente é importante imaginá-lo em relação ao passado e ao futuro. Assim compreende-se como o presente e qualquer presente ou, por outras palavras, a presença e qualquer presença é um certo modo de ausência. Quer dizer, comporta, indiscernivelmente um certo modo de ausência. Assim compreenderemos como o presente tende a escapar-nos, segundo um certo modo menos conveniente de devir. Assim, reforçamos o presente, do qual, a maior parte, tentamos escapar, de modo inconscientemente complexo. Uma das formas que adoptamos para escapar também ao choque da evidência do presente com a morte enquanto supostamente ausência. Adormecemos a presença para adormecermos a ausência. Talvez compreendendo melhor estes e outros mecanismos de pensamento, possamos dispor não só de outra compreensão de sentido mais intensificado da presença, aceitando por outro lado a ausência e a morte, de outro modo também, se bem que e porque ("bien que et parce que", expressão de Vladimir Jankélévitch que vem a propósito) mais intensificadas.

12. Quando o ouvido se antecipa ao dito.

13. O problema - um dos problemas - é que hoje, a abstracção se tornou re-presentação.

14. A hiper-presença da imediatização da mediatização tornou-se num  boom de adereço, acessório, adorno. E, por isso, dá-se uma espécie de ausência.

15. Quando algo apela a algo na sua relação recíproca - pressupondo-se aí união -, dá-se uma separação. foi isso que Parménides e Heraclito, cada no seu pólo aparentemente oposto ao do outro (o que não quer dizer que seja o mesmo pólo), compreenderam, iniciando e abrindo caminho num esboço de enunciação e tematização que começou a delinear-se em Sócrates, crescendo com Platão e culminando em Aristóteles na enunciação da definição (invenção da definição).

16. Uma espécie de véu de Maya fazendo com que nesta supra-visibilidade não vejamos assim tanto como pensamos ver. Tais são estas luzes da modernidade. Platónico isto? Talvez seja antes a sua inversão (mas inversão da inversão do platonismo), e  por isso, coisificada, reificada, sem já ter nada que ver com Nietzsche.

17. Esta talvez seja uma das principais mensagens de cristãs: "vive como se tivesses voltado ao Mundo."


Sem comentários:

Enviar um comentário