quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Fotografia - encontro - 1992-94 + - | Luís de Barreiros Tavares e Manoel Tavares Rodrigues-Leal (em casa do primeiro)














Da esquerda para a direita: Manoel Tavares Rodrigues-Leal, António Sérgio Larangeira e Luís de Barreiros Tavares. Fotografia tirada na casa do último, em Lisboa, por Carlos Trigo ("Carlos Soviético"), entre 1992-94. 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Poemas da década de 60 - Manoel Tavares Rodrigues-Leal








O tempo permanece
Lúcido
Apesar do silêncio frio
Violar o rosto
Da cidade

Lx.30/3/966

-

Não chamo
a madrugada
e a palidez
nascida carne

invento-as
com a poesia esmagada
pela febre
do meu grito
nas ruas
de silêncio obrigatório

Lx. 30/3/966

-

A tarde de hoje
Não se redime

Afogou
Esculpido silêncio
De gargantas
Sem vozes

A tarde morre
Sem dedos
Que a perdurem
Apenas equacionada
Com lábios de sangue
E destroços
De homens desenhados
Pela luxúria do crime

E a tarde permanece
Não se redime

Lx. 7/1/966

-

Posse

Hoje deixa-me inventar
O silêncio dos teus silêncios
E o prazer que escorre dos teus dedos
E as madrugadas que concebeste
Hoje deixa-me inventar
O corpo de luar que me abriste
E a pergunta dos teus medos!

Hoje deixa-me inventar o Outono do teu sorriso triste!

Lx – 27/11/964

-

Surge em flor,
Em florescência carnal,
Ávida de amor
E amplexo sexual!

Estrofe de um poema (13/2/963 Lx.)

-

Se amor é uma eterna
Pergunta sem resposta,
Se amor é uma serena
Hipnose para quem dele gosta,
Então, eu amo-te, mulher

Versos de um poema de 6/4/1960
Lisboa. O poeta tinha 18 anos quando escreveu estes versos.

Manoel Tavares Rodrigues-Leal



domingo, 4 de agosto de 2013

Breve excerto sobre a "Odisseia" de Homero - por José Pedro Serra




"No caso de Calipso, porém, há algo de terrivelmente diferente - o desejo de imortalidade presente em qualquer amor é acrescido pela possibilidade, de facto, de libertar o mortal amante da velhice e da morte, mas para o conseguir, para mergulhar na eterna e soralenga beatitude dos deuses é necessário esquecer, esquecer tudo, esquecer a Pátria e a família, esquecer Penélope e os amigos, esquecer os rios e os montes da sua ilha, visível ao longe. De todos os perigos por que passa Ulisses este é o maior: o esquecimento. No país dos Lotófagos e em Ea, vencera-o, mas nunca o esquecimento apresentara esta contraface: a imortalidade. Talvez por ser na consciência da morte que as coisas humanas ganham o seu mais fino recorte, não pode o homem nem deixar de aspirar à eternidade, como perfeita aspiração do que à perfeição escapa, nem desperdiçar a morte pela sincera verdade que à sua vida oferece. Desenham-se aqui os contornos do dilema de Ulisses: não pode, não quer recusar a imortalidade, mas essa imortalidade a que aspira o humano gesto e de que a glória é simples sombra não pode aniquilar o vivido da vida, remetê-lo para o limbo do nada, como se nada tivesse sido, mas ao contrário tem de integrar o que os deuses e o destino foram dando, tem de redimir os incompletos e dispersos fragmentos vividos, enfim, não pode desprezar de cada um a sua história, mas sim elevá-la à plenitude e à perfeição. Sem tempo e sem memória, quem é Ulisses? Perdendo-se este herói, o que significa a sua imortalidade? Na recusa de Ulisses esboça-se um trágico para doxo: querer a imortalidade a que aqui e agora se aspira, a promessa de eternidade que neste tempo se abre, a plenitude e a perfeição a que o coração e a inteligência, embora incompleta e defeituosamente, intentam, mas sendo a vida fragmento imperfeito, como conseguir ou aceitar aquelas sem trair estas, como metamorfosear em perfeita unidade o que é lacunar e mutilado sem esquecer ou desprezar a finitude das dores e das alegrias, dos amores e dos gestos? É como ser mortal que o homem aspira à imortalidade, mas como aceitar a imortalidade sem fazer perder a identidade humana, fazendo-a explodir por excesso? Se a imortalidade redimisse o que de fragmentado há na vida humana de forma a integrá-la na perfeição, ideia só obscuramente percebida e dita, Ulisses aceitá-la-ia certamente, mas deste modo, o convite de Calipso é inaceitável. Por maiores que sejam os perigos, por mais graves que sejam as provações, o destino de Ulisses é, pois, partir, se o carácter pernicioso do amor da ninfa, que o retém na ilha, se transfigurar, pela atitude heróica do filho de Laertes, num sentimento benéfico que lhe permita a partida, pese embora todas as diferenças entre Ogígia e Ítaca, entre Calipso e Penélope. «Poderosa deusa, não te irrites comigo. Ao vê-la, sei bem que a prudente Penélope não é semelhante a ti, nem em beleza, nem em estatura; é uma mortal e tu não conhecerás nem a velhice nem a morte. Apesar disso, todos os dias desejo voltar a minha casa e ver o dia do meu regresso.» E de deusa terrível, tal como Circe, Calipso, obedecendo às mais elevadas ordens de Zeus, muda-se em protectora do regresso de Ulisses."


José Pedro Serra, «Da fidelidade a Penélope ou do Amor à Viagem», in Mito e Literatura, org. Victor Jabouille, José Pedro Serra, Frederico Lourenço, Paulo Alberto, Fernando Lemos, Lisboa, Inquérito, 1993, pp. 45-62.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Leitura de algumas páginas do livro de José Gil, O Devir-Eu de Fernando Pessoa, Lisboa, Relógio D'Água, 2010.




Leitura de algumas páginas do livro de José Gil, O Devir-Eu de Fernando Pessoa, Lisboa, Relógio D'Água, 2010.


"Aqui a superfície do mar é profunda, profusa e lisa (...) :
Aqui irrompe a presença impessoal de Fernando Pessoa :
(...)"

M.T.Rodrigues-Leal 
30-6-73





"O Eu não é já um sujeito, mas um puro plano em que pode surgir qualquer mundo, qualquer realidade, brotando num fluxo intensivo. É neste sentido que se deve entender o Eu das séries da Passagem das Horas:

Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua,
Eu, o que eles não sabem de si próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso [...].

Sobretudo, não confundir este «eu» com uma instância psicológica, ou metafísica-substancial, sintetizadora das impressões, percepções, afecções de um sujeito; ou identificando-se com os seres e objectos do mundo: a identificação seria então total, o que transformaria o eu num plano... Mais uma vez, este eu não é um sujeito, mas o plano de consistência de todas as impressões e sensações; marca as fronteiras de um espaço onde brotam as sensações e as ideias, as coisas e as acções mais heteróclitas, mais aparentemente sem nexo - mas que formam um mundo. Este eu pleno, afinal, não existe - porque é o plano onde tudo pode começar a existir. Delimita o espaço que ele próprio constitui - espaço da coexistência sucessiva (passado, presente, futuro) ou simultânea de tudo o que é. Enquanto fronteira, limite desse espaço interno, o eu não significa senão a plenitude do mundo que encerra (p. 23)."(coloquei itálicos)

Se "Enquanto fronteira, limite desse espaço interno, o eu não significa senão a plenitude do mundo que encerra", tudo o que o transborda é precisamente e paradoxalmente, no avesso, o que ele também é. Ele é a dobra que encerra, porque está fora do que encerra, do que significa. Nessa dobra o eu já está fora de si, porque reverte, reversibiliza o interior como exterior e vice-versa. Reversibiliza interior e exterior, ao mesmo tempo. Nesse sentido abre-se um espaço. Um espaço do eu, de um certo eu, não substancial, "eu impessoal" (p.24), garante de novas modulações de interior e exterior."Eu impessoal, eu-plano-de-consistência das sensações, eu espaço interior feito dessa tessitura de sensibilidade dinâmica, emissora de forças: é a textura própria desse plano único da escrita poética" (p.24).

Recuemos nalgumas páginas: 
"O leitor é chamado a terminar o inacabado, mas de modo a criar um exterior-interior dentro de si (só assim ele responde ao apelo, reproduzindo a ordem exterior-interior introduzida na escrita). É chamado, pois, a construir um espaço interior de leitura proliferante - ou seja, a tornar-se ele próprio um heterónimo; melhor: a tornar-se ele próprio Pessoa, como criador de universos que, multiplicando-se, encaixam uns nos outros.
Começa-se a compreender a fascinação exercida pela poesia de Pessoa: o leitor, para acabar o espaço inacabado que lhe é proposto, é atraído para o interior virtual, a fim de ocupar o lugar para o qual é convocado enquanto leitor. Tende, pois a virtualizar-se: nesse sentido, todo o leitor tende a transformar-se num heterónimo pessoano e a devir Pessoa, a integrar-se na constelação infinita dos espaços interiores que habitam Pessoa.
O movimento de atracção resulta em captação, depois em osmose: o leitor é engolido pelos mundos sem fim da poesia pessoana. O paradoxo, que revela a força extraordinária desta poesia, vem do facto de a devoração do leitor ser devida à sua exterioridade real, para realizar o movimento final da exteriorização do espaço interior da escrita, enquanto interior (13)" (p. 21).

(13) Lembremo-nos, com efeito, de que a exteriorização do interior é o objectivo maior da poesia de Pessoa."

Voltando à reversibilidade exterior-interior do eu referida acima. Esta reversibilidade não é simétrica. Pois o próprio leitor é convocado "a terminar o inacabado". Terminar o inacabado "reproduzindo a ordem exterior-interior introduzida na escrita". Assim, a reversibilidade não se limita ao exterior-interior do eu  na sua dobra. Mas, a dobra exterior-interior opera-se na assimetria que o próprio leitor vai reproduzir ao "criar um exterior-interior dentro de si", "reproduzindo a ordem exterior-interior introduzida na escrita". Pois, a par do exterior-interior de um certo eu, a que J. Gil alude, "o paradoxo, que revela a força extraordinária desta poesia, vem do facto de a devoração do leitor ["o leitor é engolido" (p.21), "subjugado" (ver p.13)] ser devida à sua exterioridade real para realizar o movimento final da exteriorização do espaço interior da escrita, enquanto interior (p.21)". O completamento, digamos assim, em movimento, do “inacabado”, é operado pelo leitor. "O leitor é chamado a terminar o inacabado, mas de modo a criar um exterior-interior dentro de si, (só assim ele responde ao apelo, reproduzindo a ordem exterior-interior introduzida na escrita)" (p.21). Por assim dizer, esta análise de José Gil não se limita à mera tentativa de superar o binómio, a dicotomia exterior/interior. Ou, por outras palavras, a superar ou resolver a oposição e separação das categorias exterior/interior. Pois se assim fosse, permaneceríamos nas análises e pretensões tradicionais que consideram as categorias - sejam estas ou outras - ao mesmo tempo que se tenta pô-las de parte tematizando outras novas. O que se pode ler aqui, limitando-nos a estas breves páginas e sem atender a outros desenvolvimentos importantes neste estudo de J. Gil, é o deslocamento reflexivo das supostas categorias exterior/interior, em oposição, para um pensamento que as considera em movimento através do exterior-interior do eu (de um certo eu), do exterior-interior da escrita e do exterior-interior do leitor. De um certo eu: “em certo sentido, como plano-condição de possibilidade da construção de realidades intensivas, ele mesmo não tem mais do que a intensidade zero, para que tudo o que nele nasce e circula atinja as intensidades máximas, a potência máxima de existir” (p.24). Um devir-outro exterior-interior não polarizado, não bipolarizado. Ou antes, um devir-outros “exterior-interior”. 

2/8/2013
 

P.S.: Este texto encontra-se em revisão, carecendo de melhoramentos e possível desenvolvimento.






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