sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Algumas notas e citações sobre 'tathata', expressão budista designando por exemplo “talidade” (ing. Suchness, so-ness; fr. télleité, ainséité…). Algumas outras expressões relacionadas. Preliminares para um estudo.









"Tung-shan was a ninth-century Chinese master. One day when he was crossing a stream he saw his own reflection in it. He at once composed the following poem:
«Do not seek the truth from others:
Further and further he will retreat from
you.
Alone I go,
And I come across him wherever
I look.
He his no other than myself,
And yet I am not he.
When this is understood,
I am face to face with suchness (Tathata)»

Anne Bancroft, Zen, Thames and Hudson, p.75.
Nota: "Tathata" é um termo budista que quer dizer: «Naturalidade».

Imagem que figura no livro de Bancroft:: Tung-shan Crossing the stream, painting by Ma Yüan, China, 13th c. National Museum, Tokyo.

“Uma vigilância limitada a uma simples atenção aos corpos, gestos, sensações, actividades mentais e estados de consciência torna impossível o acesso à “vista” da vacuidade, primeiro da vacuidade-talidade - na versão francesa: telléité - (sunyata-tathata), depois, da total vacuidade (atyante sunyata).” (Dhammapada, Les dits de Boudha, Albin Michel, 1993,  p.18)

“Etimologicamente, a raiz de realidade é o latim res, a coisa, portanto realidade quer dizer “coisidade”, o carácter, a qualidade duma coisa enquanto tal [donde ‘talidade’] – em Sânscrito, tathata, a talidade, abusivamente traduzido por “absoluto”!” (Op.cit. p. 20)

Seria interessante confrontar ‘talidade’ com talqualidade segundo Malevitch (“talqualidade pictural”).


Não tem a célebre pintura de Malevith, “Quadrângulo Negro”, assim como outras deste grande pintor, algo que suscita a meditação? Aliás  já alguém assinalou este aspecto.


“Esta realidade não concebível, ou verdadeira vacuidade, é também chamada assindade [ainsité] (bhutathata) e significa “é assim”.” (Thich Nhat Hanh, La vision profonde, De la Pleine Conscience à la contemplation intérieure, Albin Michel, 1995, p.144)

Tathata também é uma expressão familiar de Tathagatha; mas não são o mesmo. O segundo termo remete primeiramente para a natureza de Buda.

"Para fazer lembrar aos seus discípulos a natureza sem começo, sem fim e incondicionada da realidade, Buda pediu para a chamarem Tathagatha. Não é um título honorífico. Tathagatha quer dizer “aquele que assim veio” ou “aquele que assim partiu”. Isso significa que ele saiu da essência, permanece na essência, retorna à essência, à realidade não concebível.” (Thich Nhat Hanh, Op. cit., p. 145)


“Tathâgata que se considera comumente como um outro título do Buda, significa literalmente quer “aquele que é assim vindo”, quer “aquele que é assim ido” (Suzuki, D.T., Essais sur le Bouddhisme Zen, troisième série, trad. Jean Herbert, Albin Michel, 1972, p.242)

É interessante que poderemos supor que Tathagatha é, ao mesmo tempo, “o que assim veio”, como “o que assim partiu”. 

“Podemos permanecer apaziguadamente na verdadeira natureza da consciência. Esta é chamada a realidade última. É o mundo da essência (tathata), o mundo da perfeita unicidade do espírito e do objecto.” (Op.cit., p.169)

“A verdade (dharma) do Tathagata não podendo ser definida de qualquer maneira positiva, o Prajnâ-pâramitâ apresenta uma série de negações. A única maneira de ser afirmativo neste domínio é chamar esta verdade tathâta, quer dizer, “estado de ser assim”, ou “quididade”, ou “identidade” (2) [nota de rodapé: no texto inglês: “suchness” ou “so-ness”].” (Suzuki, D.T., Op. cit, terceira série, p.111)


“(…) o vazio é nomeado o inacessível (anupalabdha) ou o impensável (achynthia), o que mostra que não é uma noção a fazer entrar numa categoria da lógica. Ele é sinónimo de quididade (tathatâ). Tathatâ ou Shûnyatâ é assim verdadeiramente o objecto de estudo dos Bodhisattvas.” (Suzuki, D.T., Op. cit, terceira série, p.257)

Os termos Suchness (Talidade – qualidade de tal – próprio de tal) bem como so-ness parecem-nos bastante interessantes e convenientes. Todavia, “quididade”, e menos ainda “identidade”, que são noções de tradição europeia remetendo para o grego, não nos parecem apropriadas. Admiro muito o mestre e erudito Zen, conhecedor da tradição filosófica europeia, Daisetz Teitaro Suzuki, autor das linhas citadas. Contudo, D. T. Suzuki emprega sistematicamente, nesta obra, o termo “quididade” como correlato de tathâta. Talvez a razão se deva à facultação de uma melhor compreensão por parte do leitor ocidental quanto a esta expressão budista tão interessante e crucial em nosso entender. Justamente, permitindo pontes e reflexões acerca de certas matrizes entre estas tradições, uma dita conceptual e a outra não, como Heidegger faz questão de assinalar no célebre diálogo com um japonês.


“(…) lo que llamamos “ser”, “individuo”, “persona” o “yo” no es sino un conjunto, sin existência real própria, de elementos físicos y psíquicos sometidos ellos mismos a contínuos câmbios [impermanência].

He aqui, resumida muy esquematicamente, la doctrina de la no-entidade (anattâ) que enseñaba el Buda. Doctrina cuyo corolário es la “vacuidade” (suññatâ) de la existência, en el sentido de que la de que vida es un constante devenir, un flujo sin ninguna entidade, personalidade o sustancias essencialmente reales. Esta concepción fundamental es privativa del budismo, y no se encuentra en ninguna outra filosofia ou religión. Para compreender bien la enseñanza del Buda y lograr la liberación [nibbâna, em Pali] que es el fin que persigue, no basta com compreender esta doctrina intelectualmente, de modo conceptual y abstracto, sino que hay que experimentarla vivencialmente, por experiencia propiá – hay que vivirla com plena conciencia -.  Esto es lo que se consigue practicando las técnicas de meditación (es decir, de observación directa de la experiencia en el momento  mismo de vivirla) que enseñó el mismo Buda.” (Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda, trad. Amadeo Solé-Leris, Barcelona, Ediciones Indigo, 1991, p.113) (Nota do autor e do tradutor).



Ora, como se viu acima, tathata encontra-se na leitura com sunyata (ou suññatâ, em pali): “vacuidade-talidade - na versão francesa: telléité - (sunyata-tathata)” (Dhammapada, Les dits de Boudha, p.19). Tal é a ‘talidade’ de tathata, a da qualidade de tal (coisa, coisas) na sua impermanência. A oposição repouso / movimento, segundo o entendimento habitual, perde o seu sentido. Pois repouso e movimento são já de outra ordem. Donde a compreensão de tathata enquanto vacuidade e impermanência.


Mas leia-se esta passagem, entre outras, segundo as palavras de Buda sobre a atenção à respiração (ânâpâ nasati): “(…) Atento aspira, atento espira. Al hacer una aspiración larga, sabe: “Hago una aspiración larga”; al hacer una espiración corta, sabe: “Hago una aspiración corta”; al hacer una espiración corta, sabe: “Hago una espiración corta”. Consciente de todo el cuerpo, aspiraré”, así se ejercita; “consciente de todo el cuerpo, espiraré”, así se ejercita. “Calmando los processos corporales, aspiraré”, así se ejercita; “calmando los processos corporales, espiraré”, así se ejercita. (…)” (Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda, p. 91).

O desdobramento do estar do constatar (uma aparente forma de estaticidade, de imobilidade) que se respira (al hacer una espiración corta, sabe: “Hago una aspiración corta”; al hacer una espiración corta, sabe: “Hago una espiración corta”) vem a par de um outro sentido de estaticidade da consciência e da plena atenção. O carácter de estaticidade, de imobilidade (noção cara ao budismo) do “estar com”, do “saber”, enfim, do constatar habitualmente abstractos, ou segundo uma certa abstracção de cariz intelectual, altera-se articulando-se com o movimento. Por isso também, o próprio sentido do movimento e do respirar enquanto movimento, se desdobram, ganhando, por seu turno um outro sentido. Eis o caminho aberto para outra experiência e vivência do repouso e movimento não se reduzindo já à mera oposição entre ambos. 

“…el sentido de que la de que vida es un constante devenir, un flujo sin ninguna entidade,personalidade o sustancias essencialmente reales…”

É o que encontramos relativamente às sensações quando Buda diz: “E quando o monge, ao inspirar e expirar, se exercita sentindo gozo, e se exercita sentindo felicidade, e se exercita percebendo a actividade da mente, e se exercita acalmando a actividade da mente, ao exercitar-se deste modo cultiva a contemplação das sensações nas sensações” (Op. cit, ).

O mesmo acontecendo para as sensações: “E quando o monge, ao inspirar e expirar, se exercita sentindo gozo, e se exercita sentindo felicidade, e se exercita percebendo a actividade da mente, e se exercita acalmando a actividade da mente, ao exercitar-se deste modo cultiva a contemplação das sensações nas sensações” (Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda).


tathatâ, (o facto de ser “isso”) ou bûthatâ (a realidade) são de ordem metafísica” (Suzuki, D.T., Op.cit., première série, p.109)
“Lorsque l’esprit est suffisamment entraîné, il voit que ni la négation (nir-atta), ni l’affirmation (atta) ne s’appliquent à la realité, mais que la vérité consiste dans la connaissance des choses telles qu’elles sont, ou plutôt telles qu’elles deviennent. Un esprit réellement sincère et intégralement purifié est le préliminaire nécessaire à la comprehension de la réalité dans son essence exacte. Comme résultat, nous avons “ti yathâ-bhûtam pajânâti”, et cela fut formulé ultérieurement par les mahâyânistes dans la doctrine du “fait d’être cela” ou du “fait d’être tel” (bûtha-tathatâ).” (Suzuki, D.T., Op.cit., Première série, p.170)
“Na passagem que abre este Sûtra [Sûtra sobre a Prajnâ-pâramita exposta por ManjushrÎ] ManjushrÎ exprime assim o seu desejo de reencontrar o Buda sob o seu verdadeiro aspecto: “Desejo ver o Buda tal qual ele é, para o benefício de todos os seres. Vejo o Buda sob o aspecto de quididade (tathâtâ), de “não-alteridade” (no-other-ness), de imutabilidade, de não-actividade; vejo o Buda como livre de nascimento e morte, de forma e não-forma, de relações de espaço e de tempo, de dualidade e não-dualidade, de sujidade e pureza. Assim visto, ele é  sob o seu verdadeiro aspecto e todos os seres dele recebem benefício. (…).” (Suzuki, D.T., Op.cit., Deuxième série, p.159)
Mas o “tal qual” não significa igualdade do representado e da representação. Tão-pouco o “enquanto tal” ontológico na linha aristotélica (o grego do to on he on – ser enquanto ser)


“Lavar a loiça é ao mesmo tempo um meio e um fim – porque não limpamos somente os pratos para que eles fiquem prontos para servir, lavamos a loiça simplesmente para lavar a loiça. Sou incapaz de limpar as peças de louça alegremente, se quero fazê-lo o mais rapidamente a fim de poder tomar uma taça de chá, seria assim incapaz de beber o meu chá alegremente.” (Thich Nhat Hanh, La vision profonde, De la Pleine Conscience à la contemplation intérieure, p. 33)

“Desde o início da nossa conversação, em nenhum momento pedi ao meu amigo para utilizar a sua “matéria cinzenta”. Somente o convidei a “ver”, a “reconhecer” as coisas comigo.” (Op. cit., p.48)

 

Pintura de Luís de Barreiros Tavares