domingo, 29 de janeiro de 2017

António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores - excerto I

António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores

Este foi transcrito agora, mas já conhecia

[…]

– É a última vez que venho aqui

ela a tirar-me cabelos da gola e a abraçar-me por trás

– Arranjaste um apartamentozinho para nós borracho?

e eu de olho no espelho concentrado em acabar o nó que detesto nós de gravata às três pancadas

– Acho que ficas melhor com o meu pai do que comigo ele tem mais tempo do que eu para te cuidar da carreira no teatro

os braços dela de súbito moles, a respiração a apressar-se-me na nuca, o turbante a desfazer-se, uma vozita infantil a tranquilizar-se a si própria, a conversar consigo mesma

– Estás a brincar comigo só podes estar a brincar comigo estás a brincar comigo não estás fofinho?

ao ir-me embora vi-a sentada na cama, de mandíbula caída, apertando a cabeça nas palmas numa incredulidade infinita

– Que parva eu sou

e tive de pedir à secretária que não me passasse as chamadas, de prevenir a segurança que a pusesse na rua no caso de aparecer no banco, escreveu-me uma carta de ameaças com mais erros de ortografia do que insultos e contudo, honra lhe seja feita, não era mentirosa ao afirmar que se dedicava a sério a um homem dado que acabou por instalar-se de armas e bagagens no Estoril para melhor amar o meu pai com uma fidelidade e uma dedicação sem limites, as minhas irmãs e as minhas primas visitavam o velho e eram recebidas por uma pulseira no tornozelo e um vestido de lycra a imitar leopardo que as tratava por coisinha, lhes oferecia cadeiras e fazia chiribibi no queixo do presidente honorário numa familiaridade conjugal
[…]”

Continua

António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores, Lisboa, Dom Quixote, 1996, p. 107 e 108


Sem comentários:

Enviar um comentário